segunda-feira, 13 de agosto de 2007



Solilóquio

Uma folha em branco deitada num tabique de madeira apodrecida, por onde escorre um halo de luz diáfana, evocação de um rosto puído e estranho, que erra por um cais sem mar. Uma página vestida de crua nudeza e de um pudor súbito e prostrante, recolhida no vago aceno de uma ave que perdeu os progenitores numa estúpida batalha de sangue morno e corrompido. Lá fora, o apelo da rua vazia morre tacitamente na brisa insustentável que arrasta o meu ser em solfejos inauditos de quem receia falar. O olhar espaventado, nutrido de reminiscências dispersas, enclausurar-se-á num ábaco indecifrável onde a alma afoita divaga num escarnecimento num pulsar estrepitoso de culpa antiga, à espera. à espera de poder regressar. Um dia. Neste dia. mas porque tarda a madrugada escarlate, tempo de libertação (ó ave, voa! Voa!), a folha incessantemente branca, pálida como a própria mortalha da morte, fermenta a minha absurda vontade de pintar uma palavra que, de repente, numa explosão vibrante e cáustica, possa exprimir o eco surdo alojado no leito frio de uma cama por fazer. mas as palavras, sórdidos engenhos da vida, Puta acossada, desfalecem escamoteadas nos lábios tugidos e áridos. E o som, adágio de corpo moribundo atirado no fosso da memória, esvai-se no vagar alucinante de um cigarro que arde ao canto da boca.

A escrita do Hélder (1994), um mar de chamas sem fim...
Uma lembrança, um olhar... a mais viva morte!

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